Mais de dez anos se passaram desde sua dolorosa partida. Lembro, com penosos detalhes, do sofrimento e da agonia do meu amigo. Mas a lembrança mais forte que sempre me vem dele é a sua risada. Risada rouca e grave, de quem fumou muito, falou muito, chorou muito, riu muito, amou muito e demais.
Porque sua obra, mais do que qualquer outro assunto, falava de Amor. De Amor e da Falta deste Amor. Não este amor barato, cotidiano e clichê, que enche as páginas das revistas de fofocas. Caio falava de um Amor maior, este Amor Maiúsculo que nos condena e nos redime de nossa sublime grandeza.e miséria. Não acho que meu amigo mereça ser lembrado como um escritor gay soropositivo que escancarou despudoradamente sua tragédia, sem culpa nem autocomiseração. Caio Fernando Abreu foi muito mais e muito além desses rótulos preconceituosos, reducionistas e empobrecedores. Caio foi / é um dos maiores escritores que este triste país já teve. Sua obra - somente agora, mais de dez anos após sua partida – vem merecidamente conquistando mais e mais admiradores. Nada mais justo que assim seja, cada vez mais.
Mas para mim, mais do que um escritor genial, ele foi um dos maiores amigos que a Senhora Dona Vida (como ele gostava de chamá-la...) me presenteou. Saudades, meu irmão. Que seja alto e iluminado o seu vôo por entre as estrelas.
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
Na Terra do Coração
Nave, ninho, poço, mata, luz, abismo, plástico, metal, espinho, gota, pedra, lata.
Passei o dia pensando – coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só som-cor, ação – repetido, invertido – ação, cor – sem sentido – couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E, como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu coração é um sapa rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traças, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é o mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.
Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças nas janelas, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra com a asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores e saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.
Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas e macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublimou um verso de Sylvia Plath: “I’m too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.
Meu coração é um filme noir, projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.
Meu coração é um deserto nuclear, varrido por ventos radioativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo, transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos; ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam por destruir tudo.
Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheio de gemidos – Ai de mim! Ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Vega. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa de Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando para a lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso – vasto, vivo: meu coração teu.
Caio Fernando Abreu
O Estado de São Paulo, 10/02/88
Passei o dia pensando – coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só som-cor, ação – repetido, invertido – ação, cor – sem sentido – couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E, como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu coração é um sapa rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traças, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é o mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.
Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças nas janelas, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra com a asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores e saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.
Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas e macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublimou um verso de Sylvia Plath: “I’m too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.
Meu coração é um filme noir, projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.
Meu coração é um deserto nuclear, varrido por ventos radioativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo, transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos; ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam por destruir tudo.
Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheio de gemidos – Ai de mim! Ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Vega. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa de Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando para a lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso – vasto, vivo: meu coração teu.
Caio Fernando Abreu
O Estado de São Paulo, 10/02/88
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